quinta-feira, 25 de setembro de 2014

km 13 - 24 Horas de Portugal



24 HORAS DE PORTUGAL
Vale de Cambra
 

20 e 21 de setembro de 2014

 
 
 
                                               "...
                                                Amanece  tan pronto
                                                y yo estoy tan solo
                                                y no me arrepiento de lo de ayer.
                                                Si, las estrellas te iluminan
                                                y te sirven de guia
                                                te sientes tan fuerte
                                                que piensas
                                                que nadie te puede tocar.
                                              
                                                Las distancias se hacen cortas
                                                pasan rápidas las horas
                                                y este cuarto no para de menguar
                                                ..."

                                                             Maldito duende, Heroes del silencio
                                                
          


      O meu banho público e o pódio!

      São 4,55h da manhã. Aproximo-me das 17 horas de prova, e as últimas horas, a caminhar,  tenho passado a somar quilómetros enquanto alguns adversários estão a dormir. Desde as 12 horas que tenho sentido fortes dores nas pernas que vão saltando de um local para outro, e que me impedem de correr. Começo a pagar a fatura da prova de Vigo, quando passaram  apenas 3 semanas do evento. De mp3 e auriculares nos ouvidos, vou afastando a solidão e o medo nesta noite fria. A música que escuto com mais atenção vem mesmo a propósito. A minha segunda banda preferida, apenas superada pelos U2, toca Maldito Duende. Olho para trás e não vejo ninguém. Para a frente e para o outro lado da pista, e nada. Avanço como se fosse o homem mais forte do mundo, apesar de algumas zonas mais obscuras da pista me provocarem calafrios. Obrigado, esta zona é um bocado fantasmagórica. Digo, quando acompanhado da Carla André num desses locais, e ela saca de uma lanterna. A fase noturna da prova é feita quase sempre em solitário. Há pouca gente na longa pista, e os ritmos são diferentes. Assim, dá para pensar em tudo e mais alguma coisa. E pensar sobretudo se foi ou não boa ideia fazer duas corridas de 24 horas num tão curto espaço de tempo. Mas, apesar de me ir arrastando na pista, de sentir fortes dores, de já ter suportado o calor abrasador da tarde e o frio da noite, depois de já ter feito o meu banho público mesmo sem ter sido nomeado e depois de ter vencido náuseas e vómitos, no me arrepiento de lo de ayer.


       Até esta altura da prova já contabilizo 105 quilómetros. Para trás ficam algumas horas de grande vigor, as iniciais, onde fui somando voltas atrás de voltas a um ritmo de 6/7 minutos o quilómetro.  Estrategicamente introduzo voltas a caminhar após largos períodos de corrida, e faço constantes paragens na tenda para me hidratar, alimentar, ler as mensagens de alguns amigos, e matar algumas formigas. O ambiente na pista  começa a tornar-se saudável e amigável. Os atletas vão-se conhecendo, fazem-se novos amigos, dão-se conselhos e recomendações e  afasta-se a rivalidade que era de esperar.  Quando atinjo os 39 quilómetros, ás 4h23' de corrida, e porque começo a sentir ligeiras náuseas e vómitos, faço uma primeira pausa mais longa de cerca de 30 minutos.  A partir daqui o meu ritmo altera-se, e as paragens tornam-se mais longas. E sempre que tento dar duas voltas seguidas, a fase final da segunda volta é já em ritmo lento, de caminhada.
      A meio da tarde mantenho uma posição na tabela classificativa perto do top 10, apesar de não fazer parte dos meus objetivos algum lugar em concreto, apenas tentar um quilometro mais que em Vigo. 
      Perto das oito da noite, tenho já 60 quilómetros somados, e todos os atletas em pista temos oportunidade de fazer o nosso banho público. Provavelmente sem sermos nomeados. Abate-se sobre nós um forte temporal. Muita chuva. Muita e fria, demasiado fria. Com algum granizo á mistura. Dentro dos parâmetros exigidos pelo banho público, o tal banho gelado. E os meus nomeados são...
       Para o início da noite estão guardadas as surpresas. Primeiro, uma meia surpresa porque já estava á espera,  vejo a Helena e o Adriano que vieram  para me apoiar. Aproveito a sua presença para fazer uma pausa para comer alguma coisa quente. Como uma, duas, três deliciosas sopas disponibilizadas pela organização. Apesar de haver um leque mais variado de pratos e outros alimentos ao nosso dispor, apenas consigo ingerir sopa. Depois de me deixarem, e porque amanhã também eles têm uma dura prova de montanha, faço-me de novo á pista, e sou verdadeiramente surpreendido por quatro pessoas que me aguardam junto ao pórtico de meta. A Juliana, a Viviana, o Eurico e o Pedro surpreendem-me. Creio que surpreendem toda a gente, porque a animação da prova aumenta consideravelmente. Não se limitam a apoiar-me a mim, mas a todos os atletas em geral, que o diga o José Capela.
       Quando me deixam, vão muito provavelmente com a ideia de que abandonaram um amigo cansado, esgotado, derrotado, que tentava adiar o inevitável: a desistência. Certamente acertaram em alguns pontos, menos no derrotado. E desistir, NUNCA.


         Meia noite. A meio do desafio.  Doze horas concluídas. 81 quilómetros contabilizados. A partir daqui tudo é mais difícil. Começa a verdadeira competição. O cansaço começa-se a sentir. As forças começam a escassear. Frio, náuseas, cansaço, enjoos, dores, solidão, sono, fome, sede. Tudo conjugado, fará com que a noite se torne penosa e sofrível. Durante o dia a pista esteve mais animada, porque havia atletas das 3 horas em prova, porque havia música junto ao pórtico de meta, e porque em determinado momento da prova, uma procissão próxima do parque, nos oferecia música litúrgica.  Na fase noturna da prova avanço praticamente sem pausas longas. As primeiras horas da madrugada faço a correr, depois, porque as dores não me permitem, e porque o cansaço e o sono se fazem sentir, faço a caminhar. Quando o dia começa a clarear, conto já com 115 quilómetros. A 5 horas do final ocupo a 7ª posição, mas estou apenas a 10 quilómetros de atingir a minha primeira meta. Basta-me uma volta por hora, e objetivo cumprido. Desconfortável com as fortes dores que sinto, tomo um analgésico, e uso um spray que a Carla me oferece para passar nas zonas mais dolorosas. Não sei qual o fármaco que faz mais efeito, mas entre as 8h e as 9h30' dou 6 voltas á pista a uma média de 7/8' o quilómetro sem dores. Nesta fase, ás 8h41' ultrapasso os 124 quilómetros de Vigo. Mas, quando passa o efeito das drogas, as dores regressam ainda com mais intensidade. Faltam 2h30' e não aguento mais. Com mais força mental do que física, vou-me arrastando  por mais quatro voltas. Alguns atletas recomendam-me que desista, outros vão-me animando. A Flor Madureira é incansável nesta fase final, só falta mesmo que me leve ao colo. Também um ciclista que passa por mim na última volta, se oferece para me dar boleia. Não vale a pena fazer batota agora. Faltam 10 minutos e 50 metros para o final. Esgotado deito-me sobre a relva. "Se me deito, depois não me levanto", diz a campeã feminina.  Outros atletas aguardam o passar dos minutos. Alguns ainda frescos arriscam uma volta mais. Está quase a soar o gongo. Levanto-me e aproximo-me da meta. Começo a emocionar-me, e sem pensar em nada em particular, veem-me lágrimas aos olhos. "Calma, calma, já está". Segreda-me alguém ao ouvido.
      Soa o gongo. Levanto os braços e passo a linha da meta. Sinto-me o louco mais louco do mundo. Se, à um mês atrás, fazer uma prova de 24 horas era uma loucura, fazer duas num espaço de 3 semanas é loucura a dobrar. Internem-me por favor, mas deixem-me correr.

24 horas depois


      Situação inédita nas minhas aventuras, estava reservada para esta prova. Uma subida ao pódio. E que subida...Nem sabia muito bem como me comportar. Talvez devesse pôr-me aos saltos, mas a verdade é que não podia, não conseguia. E afinal, não era um primeiro lugar, apenas o segundo no escalão.



      Um agradecimento especial á organização, nota dez e obrigado por nos terem proporcionado estas 24 horas de convívio, competição e adrenalina. Um agradecimento aos restantes atletas por deixarem que corra a seu lado, e pelas palavras de animo.
         Uma grande felicitação ao vencedor Andrés Vazquez. Que máquina, fez 96.6 quilómetros. Desculpe-me Andrés, mas o mesmo número de  quilómetros tem que ser dividido pela sua esposa. Que dedicação. Que amor. Que equipa. Esteve 24 ininterruptas horas a prestar assistência ao grande vencedor. 193 Quilómetros somou a dupla.
         Uma grande felicitação para a vencedora feminina, Carla André. André, Andrés. Cá para mim isto estava combinado. Somou 145 quilómetros, e apenas cinco homens ficaram á sua frente. Vou-te confessar. Também tentei ficar á tua frente, mas sempre tive muito medo de correr em algumas zonas da pista, sozinho e durante a noite. Muito obrigado pelos bons momentos de corrida.

Na companhia do José Manso

         Vinha com vontade de esquecer a má prova de Vigo, mas uma vez mais o estomago acaba por atraiçoá-lo. Passou mais tempo a dormir do que em pista, mas enquanto esteve em pista, preocupou-se em falar com os outros atletas. Conhecer, fazer amigos, dar conselhos, incentivar, animar. Um bem haja pela tua presença na nossa prova José. E desculpa por não te ter feito companhia enquanto dormias. Mas foi muito bom voltar a correr a teu lado. Ao mais humilde dos atletas, ao grande campeão José Manso, um muito obrigado em nome de todos.

       Estou convencido de que a satisfação foi total. E que todos os presentes pensam voltar na próxima edição. Por isso apontem o meu nome. Quero juntar-me á família 24 horas de Portugal.

   P.S. Não traduzi o texto da música dos Heroes del Silencio, porque estou convencido que todos sabem um pouco de espanhol.

CLASSIFICAÇÃO DOS 23 HERÓIS


       

        Até já!
      



 

terça-feira, 2 de setembro de 2014

km 12 - 24 Horas de Vigo



24 HORAS DE VIGO
 

30 e 31 de agosto de 2014

 
 
 
                                               "Heróis do mar, nobre povo.
                                                Nação valente e imortal.
                                                Levantai hoje de novo,
                                                O esplendor de Portugal."
         
          


      18 heróis e mais 3!

      Vale a pena recordar e tecer algumas considerações sobre os 18 incríveis heróis da competição individual das 24 horas de Vigo. Sobre alguns terei mais que dizer, uma vez que privei mais com uns que com outros, quer nas boxes quer durante a corrida. Apresentá-los-ei segundo a classificação final, e também como forma de homenagem da minha parte por tal proeza.

Apenas alguns dos elementos que completamos a prova.


José Manuel Conde Gonzalez, 70 anos.
      "Tengo que ser bueno. Si tanto me animan."
     O fenómeno. O craque. Alguns dos adjetivos com que foi brindado ao longo da corrida. Uma força da natureza, um exemplo, digo eu. Completou 162 quilómetros até às 22h30'. Encosta às boxes numa altura em que já não estava em risco o 1º lugar, face à compensação dada segundo a idade. Enquanto durou, quase nunca abandonou a pista. Que bom foi ver-te passar uma e outra vez por mim, e chamar-te campeon.
Luís Santiago Costa, 43 anos.
      O grande prejudicado pelo sistema de classificação. Foi o atleta que completou um maior número de quilómetros, 178. Nunca o vi nas boxes. Em passo lento e ritmado, foi somando quilómetros. Acabou as últimas horas já a caminhar. Sempre me dirigiu palavras de incentivo quando nos cruzamos. Foste enorme.
Marcos Éguia Louzán, 49 anos.
      Acaba o desafio completamente de rastos. Uma lesão na tíbia tirou-lhe força, mas nunca o entusiasmo e a vontade mental de avançar. Uma verdadeira máquina a somar quilómetros. Um total de 156. Bravo.
 4º José Rafael Gonzalez Caride, 54 anos.
      Uma lesão não lhe permite que faça a prova em ritmo de corrida. A caminhar soma um total de 145 quilómetros. A um par de horas do final da prova, um corredor de domingo, apelida-o de tartaruga. Que bom foi correr a teu lado, e pedir aquela pequena ovação, em jeito de brincadeira, para o campeon. Uma valente tartaruga, sim senhor.
5º  Fernando Ibarra Carbón, 45 anos.
       Mais um grande campeão. 154 quilómetros somados.
Manuel Dominguez De La Fuente, 37 anos.
       Que grande. O terceiro atleta que somou mais quilómetros, 157. De forma saudável preocupou-se sempre em ver a atualização da quilometragem dos adversários. Dos mais competitivos.
Pablo Dominguez Martinez, 36 anos.
       O sexto atleta que ultrapassou a barreira dos 150 quilómetros, chegou aos 154. Enorme.
Isaac Martinez Chouza, 44 anos.
      O atleta mais alto do grupo. Chegou aos 143 quilómetros.
Javier Santos Gonzalez, 40 anos.
      Deu tudo para somar quilómetros, chegou aos 142, completamente esgotado.
10º Javier Fernandez Sobrino, 56 anos.
     Abandonou a prova pouco depois das 16 horas com queimaduras graves nas virilhas. Era o segundo classificado na altura com 121 quilómetros somados. Incrível.
11º António Vazquez de Parga Benitez, 43 anos.
      Divertida a forma como permitimos que José Manso continuasse a dormir, para o alcançarmos na classificação. Somou 127 quilómetros.
12º Paulo Pereira Machado, 39 anos.
       O português, como fui carinhosamente tratado no grupo.  Cheguei aos 124 quilómetros.
13º José Manso Crespo, 42 anos.
        O sistema de compensação fez com que o campeão espanhol das 24 horas perdesse a paciência. Por mais que corresse não ultrapassava quem corria menos que ele. Destroçado, abandona com problemas estomacais. Importante pela experiência e conselhos que foi transmitindo ao grupo. Ficou-se pelos 121 quilómetros.
 14º Daniel Fernandez Cerzón, 23 anos.
         O benjamim do grupo. De louvar a bravia com que enfrentou o desafio. Tinha por meta chegar aos 70/80 quilómetros. Alcançou os 118 apesar dos problemas físicos. Foi granjeando a atenção especial de fotografas e voluntárias.
15º António Francisco Gil Alonso, 46 anos.
           Fez 79 quilómetros em 10h30', antes de abandonar a prova.
16º José Manuel Lago Costas, 43 anos.
          Uma grande bolha no pé atirou-o para fora da prova  após 16 horas. Estávamos a travar uma divertida luta pela soma de quilómetros. Ficou-se pelos 76. Lo siento amigo, el português te ha ganado!
 17º Cristina Gonzales Garcia, 30 anos.
           A  única mulher no grupo. Não estava lá para correr as 24 horas, apenas 6 e tentar bater o seu record que estava nos 74 quilómetros. Ultrapassou, e chegou aos 77. Grande campeã.
 18º Alberto Melendez Perez, 41 anos.
           Estava apenas a fazer um treino de 8 horas para uma futura prova de 24. Completou 72 quilómetros em 8h 45'.

           E naturalmente agora vou desfazer o mistério de quem são os mais três.
           Em primeiro lugar, a organização e os seus voluntários. Simplesmente nota dez. Não há nada a apontar. Todos os voluntários foram incansáveis, atenciosos, afáveis, incentivadores. E a maioria deles, senão a totalidade, também integravam equipas que participaram na prova de estafetas. Que grandes profissionais. Um exemplo para a maioria das organizações que se dizem profissionais. Talvez devam pedir o livro de instruções a Castrelos 20-30. E que amáveis e prestáveis as voluntárias que estavam nas nossas boxes. Estou convencido de que, se tenho pedido uma francesinha, fariam tudo para satisfazer o meu pedido. Que grandes, foram enormes.
           Em segundo lugar, o público. Um dos principais motivos porque tanto gosto de correr em Espanha tem a ver com o seu público. São incansáveis no apoio aos atletas, quer sejam primeiros ou últimos. São inexcedíveis.  Foi tão bom ouvir o meu nome uma e outra vez. Foi tão bom ouvir " força Paulinho". Foi tão bom ouvir-vos gritar "Portugal, Portugal, Portugal." E foi extraordinariamente bom ouvir-vos cantar "A Portuguesa", e receber cumprimentos de alguns de vós no final da corrida. Que contraste em comparação com o trail que corri na minha terra natal há apenas 3 meses.
           E por último, e porque foram os grandes animadores das 24 horas, os bravos e heroicos  atletas que corriam por estafetas. Que grande competitividade e entrega. Incansáveis. Foram verdadeiros guerreiros e estrategas lutando até á exaustão, e utilizando a melhor tática que os levasse ao melhor lugar na classificação. Apesar de terem passado por nós como autênticas flechas, foram sempre deixando palavras de incentivo aos atletas individuais. 

Fase noturna da corrida
 


      Muito mais que uma corrida!

      Diz um slogan relativo ao parque de Castrelos que: en Castrelos nunca corres solo. A frase refere-se ao facto de em Castrelos haver sempre alguém a correr. Durante esta prova senti que o significado deste slogan vai mais longe, e cada palavra de incentivo, quer por parte de atletas, voluntários ou público em geral, era como uma passada extra que alguém dava por mim. Metade da proeza é minha, a outra metade tenho que dividir, porque em Castrelos, nunca corri só.


Foto:Alexhaphotos
 
Foto: Alexhaphotos
 



     Ao contrário do que senti em outras provas e desafios, não me sinto atormentado nem nervoso pelo facto de estar prestes a viver a minha maior aventura no mundo do atletismo.  O único aspeto que me deixa apreensivo prende-se com a logística. Tenho receio de vir a precisar de alguma coisa que me tenha esquecido, ou simplesmente, não tenha considerado importante trazer para a prova. Assim, depois de ter levantado o dorsal, ter sido saudado por organizadores e voluntários, e ter conhecido o meu local a ocupar nas boxes, decido-me a trazer para a minha área tudo quanto preparei, para que nada me falte. Água ( das Pedras, claro), café, sopa, fruta, roupa suplementar, e outras pequenas coisas que achei conveniente trazer.
       O grupo vai-se compondo, vai-se conhecendo. Dão-se conselhos e recomendações. Vai-se criando um clima de rivalidade, ou talvez não. O final da prova vai-me dizer que nunca houve rivalidade, mas sim muita união, muito companheirismo e amizade. Por mais que lutássemos por ser melhores que os nossos adversários, nunca deixamos de nos motivar e incentivar uns aos outros. Fomos uma autêntica família por 24 horas.
        Depois de uma volta de aquecimento, onde se assinalava o cariz social da prova, o tiro de partida é dado, como era de esperar, às 12 horas em ponto. E uma vez mais ao contrário de outras provas, não me coloco o mais à frente possível, mas sim bem na cauda, junto de outros atletas individuais. Nas primeiras horas de corrida, ainda fresco, tenho dificuldade em manter o ritmo lento que desejo. Mantenho um ritmo entre os 7/8 minutos por quilómetro durante as primeiras 5 horas de corrida. Chego facilmente aos 40 quilómetros, mas o calor e a humidade tornam o desafio mais difícil. As paragens nas boxes são constantes, preciso de água e de me alimentar constantemente. Mais tarde vou saber que este é o dia mais quente do ano em Vigo. Ultrapasso as 5 horas de corrida, e a partir daqui começo a fazer series de 5 km, com uma paragem mais prolongada nas boxes  entre cada série, para me alimentar, hidratar e descansar.
        Soa o alarme depois de 50 quilómetros e com 7 horas já passadas. Sinto as fortes náuseas que me costumam atormentar nas corridas mais longas e mais desgastantes. Temo passar as próximas horas sem conseguir ingerir o que quer que seja. E mais grave ainda, sem poder somar quilómetros. A atenção das voluntárias está voltada para mim. Incansáveis, procuram solução para o meu problema. Alguns minutos depois já está um médico junto de mim. Curiosamente, também ele é parte integrante de uma equipa de estafetas. Depois de analisar o meu estado de saúde, recomenda-me que descanse algum tempo, que coloque as pernas ao alto e que coma alguns alimentos salgados.
           Faço-me de novo á pista depois de cumpridas as recomendações  médicas e de já me sentir melhor. Continuo a fazer series de 5 quilómetros, mas o ritmo de corrida é mais lento, e vou alternando com períodos de caminhada rápida. A minha passada lenta e arrastada começa a ser reconhecida pelos meus adversários. Em determinado momento da corrida, quando me aproximo de 3 deles que avançam a caminhar, Javier Sobrino disparou: " Me suena este ruido. Es de un português!"
           Incansáveis continuam a ser os atletas que esperam a sua vez de competir, e os voluntários que se encontram ao longo do percurso. Não param de incentivar, quer a nós os individuais, quer os estafetas. "No me importa que te enfades, no voy parar de animarte."  Nunca me zango com as palavras de incentivo. Em determinados momentos também não me faço rogado no apoio aos restantes atletas. Apenas me zango por me ver ultrapassado por tantas miúdas. Aish.
           Cumpro as 9 horas de corrida, com um total de 60 quilómetros, quando faço uma pausa para jantar. Por insistência das voluntárias, prolongo essa pausa por algum tempo mais, mas rapidamente regresso ao meu conta quilómetros. Mantenho a tática, series de 5 quilómetros, com pausas entre elas. A uma média de 5 quilómetros por hora, atinjo os 95 às 16h30' de corrida. Neste momento, dirijo-me ás boxes e solto um já chega, já não posso mais. Só quero chegar aos 100, e pronto! Tento dormir um pouco, descansar. Que inveja do José Manso que continua a meu lado a dormir como uma criança. Faz demasiado  frio, e não estou convenientemente confortável para poder adormecer. Viro-me para um lado, para o outro. Cubro-me com uma toalha. Faço nova almofada com a roupa que me sobra. Mas nem a contar carneiros consigo adormecer. Incomodado com o frio que sinto, volto á corrida. Preciso de aquecer. Faço um quilómetro, e mais outro, e um mais. Mudo a tática. Faço de 2 em 2 quilómetros, a caminhar nas zonas onde não há público, e a trotar nas zonas mais povoadas, e paro a cada serie durante 15 a 20 minutos. De 2 em 2, ás 22 horas de corrida atinjo a marca dos 110 quilómetros. Reformulo novo objetivo, chegar aos 120.  Ás 10 da manhã, cresce substancialmente o número de espetadores. O entusiasmo é maior. A luta pelos primeiros lugares nas estafetas está ao rubro. Os melhores atletas estão reservados para os últimos quilómetros. Correm como nunca. Os incentivos fazem-se ouvir mais insistentemente. Não há quem tire os olhos do circuito. Já mudei 2 vezes de camisa, nas primeiras trazia o meu nome impresso. Nesta já não trago. Mas estranhamente, as pessoas continuam a tratar-me pelo meu nome. Por vezes, carinhosamente tratam-me por Paulinho. "Animo Paulinho. Vamos p'arriba." Não me faço rogado e mantenho um  ritmo de corrida, lento mas contínuo. Caminhar nesta altura da prova nem pensar. Ás 11 horas chego aos 116 km. Faço as minhas contas, e com um ritmo de 10' o quilómetro, e com paragem nas boxes de tempo igual, a marca dos 120 está no papo. Mas esta última hora torna-se especial. Afinal em Castrelos  nunca corres só. E se aumenta o número de pessoas presentes, aumenta também o número dos que correm por ti. Já não faço paragens longas, apenas o suficiente para tragar um pouco de água e regresso à pista. Mantenho a passada arrastada porque a força escasseia, e levantar as pernas é missão quase impossível. Às 11.40' faço a última paragem nas boxes, com uma missão suplementar. Coloco a bandeira de Portugal sobre os ombros e troto para a linha de meta onde cumpro a volta número 121.  Faltam 18 minutos para o final. Duas voltas e missão cumprida. O que se passa a seguir nem eu sei explicar. O mesmo atleta que há já largas horas vinha a arrastar os pés começa a ganhar força. A passada é larga. Consigo rivalizar com grande parte dos estafetas. Cumpro uma volta mais, em menos de 5 minutos. Pelo caminho emociono-me quando ouço gritar: Portugal, Portugal, Portugal. Parto para uma volta mais, agora acompanhado por um voluntário. Digo-lhe que vamos dar  2 voltas. Tem dificuldade em aceitar, mas tenta manter o meu ritmo, mas desta vez vou mais lento.  No mesmo local onde na volta anterior ouvi gritar o nome de Portugal, cantam-me agora A Portuguesa. Não consigo olhar as caras de quem continua a incentivar-nos, mas muito provavelmente estão tão admirados quanto eu. Nova chegada á meta, e o meu voluntário tem que ser substituído. Que maldade Paulo. Ainda faltam 7 minutos. Digo-lhe que vão ser 2 voltas mais. Mas desta vez compadeço-me do meu voluntário e reduzo o ritmo. Paramos mesmo ,para deixar passar os minutos. Faltam menos de dois minutos para soar o gongo. Recomeçamos a correr. Quando passo pela zona onde ouvi a maior parte dos incentivos, agradeço o apoio que me deram. Mesmo a correr, faço pequenas vénias e aplaudo. Repito semelhante gesto na zona que precede a meta. Também o público é vencedor. Também o público me ajudou a cumprir o objetivo. Não ganhei. Também não perdi. Alias, ninguém perdeu. Quando cada um dá o que tem e o que não tem, não se pode considerar perdedor. Todos ganhamos. Castrelos ganhou.




 
O abraço especial de José Manso

      
     As lágrimas no final da prova são inevitáveis. Começam a ser um costume. Talvez tenha estranhado a falta de apoio de alguém mais próximo, apesar da muito agradável surpresa a meio da tarde de sábado ( obrigado Viviana e Pedro ). Talvez quisesse partilhar a minha alegria no final com alguém especial. Ou talvez quisesse dizer a quantos me disseram para ter juízo, que não sou fácil de derrotar. A verdade é que vivi a mais bela jornada de atletismo em que participei. Por isso foi com muita emoção que recebi abraços e felicitações de quem correu a meu lado, ou de quem me viu correr. "Como venias y como has terminado. Te felicito."  
        Para repetir?
        Se for em Castrelos, claro que repito.

Entrada para as 3 voltas da consagração

            
            Até já!




          



        

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Km 11 - XXX Maratón Internacional de la Ciudad De Mexico




 XXX
Maratón Internacional de la Ciudad de México

 

2 de setembro de 2012

 
 
 
                                   "Llora, grita, que se te caiga una uña del pie,
                                     hazte del baño en tu
                                     short....
                                     Pero, no dejes de correr!!!"
                                                
                                                        
Comprovativo de inscrição


                                         
          Sangue, suor e lágrimas!

         Interrompo a cronologia lógica das últimas crónicas, para fazer uma viagem no tempo e recordar convosco aquela que foi a minha primeira grande aventura de sapatilhas, dorsal e chip.
         Dois dias apenas após as 24 horas mais loucas que vivi, onde passei por diversos estados de espírito que mudavam a cada minuto do desafio, e ainda a digerir as emoções da prova, não consigo classificar qual das experiencias me deu mais gozo enfrentar. Em momento oportuno falarei das 24 horas de Vigo, mas agora é hora de celebrar o 2º aniversário após a minha estreia em maratonas. E que melhor local para me estrear senão a minha cidade de eleição?
          A pedido de um jornal regional, e porque na altura ainda não tinha blogue, escrevi uma pequena crónica sobre o que vivi naquela célebre manhã de 2 de setembro de 2012.



"A CIDADE A MEUS PÉS

São seis da manhã e o metro é gratuito para os corredores. O polícia pede-me que coloque o meu número. Saio da estação San Cosme, em direção a outra estação, a de Zocalo. O metro já se apresenta cheio de atletas que mostram algum nervosismo. O céu está estrelado, a noite ainda paira sobre a cidade. Às 7 horas, uma banda militar toca o hino nacional mexicano e, pouco depois, é dada a partida para as atletas femininas. Às 7.20 horas, escuta-se o tema musical do filme "Rocky". É hora de dominar o medo e de desfrutar a minha primeira maratona. O Zocalo atravessa-se ao som de foguetes. A cidade está a meus pés. Sinto-me poderoso ao atravessar o "Paseo de la Reforma" e as ruas de  "Polanco", geralmente saturadas de automóveis, mas hoje preparadas para render tributo a todos aqueles que trotam pelo prazer de sentir a adrenalina que os leva a levantar os pés uma e outra vez. Ao passar pelo túnel do "Chivatito", ouve-se alguém a gritar: “Já se cansaram?”. Os corredores respondem: “Não”. Pelo caminho, vão-se escutando as vozes incansáveis das cerca de 1 milhão de pessoas presentes nas ruas: “Si, se puede. Si, se puede. Si, se
puede”, com algumas dessas vozes dirigidas a atletas em particular. E  foi com prazer que fui escutando uma e outra vez frases como: “Vamos, Paulo. Ânimo, Paulo” (colocar o meu nome na camisa foi boa ideia!), como se cada uma daquelas vozes representasse a minha família ou os meus amigos. Já havia corrido 20 quilómetros, a uma média de 46 minutos por cada 10 deles. Mas, ao chegar aos 30 km, quando começa a extensa reta de "Insurgentes", começo a ter os primeiros problemas físicos, começam a atormentar-me as cãibras, primeiro uma coxa, depois a outra. Ouço alguns incentivos de outros atletas e a oferta de ajuda por parte de alguns que desistem, porque uma pausa colocá-los-ia na mesma situação que eu. Depois das cãibras, novo problema surge: é necessário descobrir um restaurante aberto, onde possa aliviar problemas intestinais. Tudo parecia perdido. Havia perdido o bom ritmo que vinha apresentando, as forças vão-se, falta uma eternidade para chegar a "Reforma". Faltam 7 quilómetros e atormenta-me a ideia de desistir. Não me imagino a regressar a casa com esse fracasso. A dor seria maior.
Aos 35 km, com 2 h 57 m já passadas, a meta de baixar as 3 h 30 minutos parece uma miragem. É hora de sofrer. Todas as pessoas que estão na rua são incansáveis no apoio: dão “bolsitas” com refrescos, gomas e caramelos. Os miúdos acham muita graça em poderem oferecer uma laranja e poderem gritar: "Ya falta poco. Si, se puede". Uma voz mais estridente alerta-me: “Não pares de correr, eu não paro de gritar". A correr os últimos quilómetros de forma mais lenta, quase já a caminhar, vai dando para observar tudo o que me rodeia mais ao pormenor, podendo ler os muitos cartazes que vão apoiando alguns atletas.  Alguns deles muito interessantes, curiosos, cheios de humor, como um que dizia: “Mas despacio, mi papa viene atrás" (“corram mais devagar, o meu pai vem atrás”). Aproximo-me do Zocalo, entro na "20 de Noviembre". Avisto a meta ao fundo, falta pouco mais de um simples quilómetro. Está perto o meu momento de glória. Lembro- me de todos os que disseram que eu iria conseguir. A 200 metros da meta, procuro a bandeira portuguesa entre o público, vejo-a nas mãos do meu amigo Abraham que me espera e me vai procurando entre o grande número de atletas. “Roubo-lha” das mãos e só então ele repara que estou prestes a viver o meu momento de glória. É hora de correr para a meta, com a bandeira pelos ombros, já não há força para a levantar mais alto e viver, triunfante, o grande momento, lembrando as vozes de fundo, ao longo da corrida: “Si, se puede!" E eu consegui. Caminho em silêncio por entre atletas triunfantes que recebem os parabéns de familiares e amigos. Veem-me lágrimas aos olhos. Alguém me pergunta: "De Portugal?". Com orgulho, respondo que sim. ISTO É A GLÓRIA."


                                 In Mensagens Aguiarenses ,11 setembro 2012

Passagem pelos 10 km


O momento de glória

      Depois de transcrever o texto para o blogue, veem-me de novo lágrimas aos olhos. Não resisto sempre que recordo a emoção do momento.
      E porque não refiro dados finais referentes á minha corrida na crónica, aqui ficam para a posteridade.

      Para a estatística:

      Maratona número 1

      Tempo líquido (chip): 3h46'34'' ( a 1h30'42'' do vencedor)
      Classificação geral: 1283 (7948 inscritos)
      Classificação masculina: 1122 (6447 inscritos)
      Classificação categoria (35-39): 204 (1089 inscritos)

     Até já!