terça-feira, 2 de setembro de 2014

km 12 - 24 Horas de Vigo



24 HORAS DE VIGO
 

30 e 31 de agosto de 2014

 
 
 
                                               "Heróis do mar, nobre povo.
                                                Nação valente e imortal.
                                                Levantai hoje de novo,
                                                O esplendor de Portugal."
         
          


      18 heróis e mais 3!

      Vale a pena recordar e tecer algumas considerações sobre os 18 incríveis heróis da competição individual das 24 horas de Vigo. Sobre alguns terei mais que dizer, uma vez que privei mais com uns que com outros, quer nas boxes quer durante a corrida. Apresentá-los-ei segundo a classificação final, e também como forma de homenagem da minha parte por tal proeza.

Apenas alguns dos elementos que completamos a prova.


José Manuel Conde Gonzalez, 70 anos.
      "Tengo que ser bueno. Si tanto me animan."
     O fenómeno. O craque. Alguns dos adjetivos com que foi brindado ao longo da corrida. Uma força da natureza, um exemplo, digo eu. Completou 162 quilómetros até às 22h30'. Encosta às boxes numa altura em que já não estava em risco o 1º lugar, face à compensação dada segundo a idade. Enquanto durou, quase nunca abandonou a pista. Que bom foi ver-te passar uma e outra vez por mim, e chamar-te campeon.
Luís Santiago Costa, 43 anos.
      O grande prejudicado pelo sistema de classificação. Foi o atleta que completou um maior número de quilómetros, 178. Nunca o vi nas boxes. Em passo lento e ritmado, foi somando quilómetros. Acabou as últimas horas já a caminhar. Sempre me dirigiu palavras de incentivo quando nos cruzamos. Foste enorme.
Marcos Éguia Louzán, 49 anos.
      Acaba o desafio completamente de rastos. Uma lesão na tíbia tirou-lhe força, mas nunca o entusiasmo e a vontade mental de avançar. Uma verdadeira máquina a somar quilómetros. Um total de 156. Bravo.
 4º José Rafael Gonzalez Caride, 54 anos.
      Uma lesão não lhe permite que faça a prova em ritmo de corrida. A caminhar soma um total de 145 quilómetros. A um par de horas do final da prova, um corredor de domingo, apelida-o de tartaruga. Que bom foi correr a teu lado, e pedir aquela pequena ovação, em jeito de brincadeira, para o campeon. Uma valente tartaruga, sim senhor.
5º  Fernando Ibarra Carbón, 45 anos.
       Mais um grande campeão. 154 quilómetros somados.
Manuel Dominguez De La Fuente, 37 anos.
       Que grande. O terceiro atleta que somou mais quilómetros, 157. De forma saudável preocupou-se sempre em ver a atualização da quilometragem dos adversários. Dos mais competitivos.
Pablo Dominguez Martinez, 36 anos.
       O sexto atleta que ultrapassou a barreira dos 150 quilómetros, chegou aos 154. Enorme.
Isaac Martinez Chouza, 44 anos.
      O atleta mais alto do grupo. Chegou aos 143 quilómetros.
Javier Santos Gonzalez, 40 anos.
      Deu tudo para somar quilómetros, chegou aos 142, completamente esgotado.
10º Javier Fernandez Sobrino, 56 anos.
     Abandonou a prova pouco depois das 16 horas com queimaduras graves nas virilhas. Era o segundo classificado na altura com 121 quilómetros somados. Incrível.
11º António Vazquez de Parga Benitez, 43 anos.
      Divertida a forma como permitimos que José Manso continuasse a dormir, para o alcançarmos na classificação. Somou 127 quilómetros.
12º Paulo Pereira Machado, 39 anos.
       O português, como fui carinhosamente tratado no grupo.  Cheguei aos 124 quilómetros.
13º José Manso Crespo, 42 anos.
        O sistema de compensação fez com que o campeão espanhol das 24 horas perdesse a paciência. Por mais que corresse não ultrapassava quem corria menos que ele. Destroçado, abandona com problemas estomacais. Importante pela experiência e conselhos que foi transmitindo ao grupo. Ficou-se pelos 121 quilómetros.
 14º Daniel Fernandez Cerzón, 23 anos.
         O benjamim do grupo. De louvar a bravia com que enfrentou o desafio. Tinha por meta chegar aos 70/80 quilómetros. Alcançou os 118 apesar dos problemas físicos. Foi granjeando a atenção especial de fotografas e voluntárias.
15º António Francisco Gil Alonso, 46 anos.
           Fez 79 quilómetros em 10h30', antes de abandonar a prova.
16º José Manuel Lago Costas, 43 anos.
          Uma grande bolha no pé atirou-o para fora da prova  após 16 horas. Estávamos a travar uma divertida luta pela soma de quilómetros. Ficou-se pelos 76. Lo siento amigo, el português te ha ganado!
 17º Cristina Gonzales Garcia, 30 anos.
           A  única mulher no grupo. Não estava lá para correr as 24 horas, apenas 6 e tentar bater o seu record que estava nos 74 quilómetros. Ultrapassou, e chegou aos 77. Grande campeã.
 18º Alberto Melendez Perez, 41 anos.
           Estava apenas a fazer um treino de 8 horas para uma futura prova de 24. Completou 72 quilómetros em 8h 45'.

           E naturalmente agora vou desfazer o mistério de quem são os mais três.
           Em primeiro lugar, a organização e os seus voluntários. Simplesmente nota dez. Não há nada a apontar. Todos os voluntários foram incansáveis, atenciosos, afáveis, incentivadores. E a maioria deles, senão a totalidade, também integravam equipas que participaram na prova de estafetas. Que grandes profissionais. Um exemplo para a maioria das organizações que se dizem profissionais. Talvez devam pedir o livro de instruções a Castrelos 20-30. E que amáveis e prestáveis as voluntárias que estavam nas nossas boxes. Estou convencido de que, se tenho pedido uma francesinha, fariam tudo para satisfazer o meu pedido. Que grandes, foram enormes.
           Em segundo lugar, o público. Um dos principais motivos porque tanto gosto de correr em Espanha tem a ver com o seu público. São incansáveis no apoio aos atletas, quer sejam primeiros ou últimos. São inexcedíveis.  Foi tão bom ouvir o meu nome uma e outra vez. Foi tão bom ouvir " força Paulinho". Foi tão bom ouvir-vos gritar "Portugal, Portugal, Portugal." E foi extraordinariamente bom ouvir-vos cantar "A Portuguesa", e receber cumprimentos de alguns de vós no final da corrida. Que contraste em comparação com o trail que corri na minha terra natal há apenas 3 meses.
           E por último, e porque foram os grandes animadores das 24 horas, os bravos e heroicos  atletas que corriam por estafetas. Que grande competitividade e entrega. Incansáveis. Foram verdadeiros guerreiros e estrategas lutando até á exaustão, e utilizando a melhor tática que os levasse ao melhor lugar na classificação. Apesar de terem passado por nós como autênticas flechas, foram sempre deixando palavras de incentivo aos atletas individuais. 

Fase noturna da corrida
 


      Muito mais que uma corrida!

      Diz um slogan relativo ao parque de Castrelos que: en Castrelos nunca corres solo. A frase refere-se ao facto de em Castrelos haver sempre alguém a correr. Durante esta prova senti que o significado deste slogan vai mais longe, e cada palavra de incentivo, quer por parte de atletas, voluntários ou público em geral, era como uma passada extra que alguém dava por mim. Metade da proeza é minha, a outra metade tenho que dividir, porque em Castrelos, nunca corri só.


Foto:Alexhaphotos
 
Foto: Alexhaphotos
 



     Ao contrário do que senti em outras provas e desafios, não me sinto atormentado nem nervoso pelo facto de estar prestes a viver a minha maior aventura no mundo do atletismo.  O único aspeto que me deixa apreensivo prende-se com a logística. Tenho receio de vir a precisar de alguma coisa que me tenha esquecido, ou simplesmente, não tenha considerado importante trazer para a prova. Assim, depois de ter levantado o dorsal, ter sido saudado por organizadores e voluntários, e ter conhecido o meu local a ocupar nas boxes, decido-me a trazer para a minha área tudo quanto preparei, para que nada me falte. Água ( das Pedras, claro), café, sopa, fruta, roupa suplementar, e outras pequenas coisas que achei conveniente trazer.
       O grupo vai-se compondo, vai-se conhecendo. Dão-se conselhos e recomendações. Vai-se criando um clima de rivalidade, ou talvez não. O final da prova vai-me dizer que nunca houve rivalidade, mas sim muita união, muito companheirismo e amizade. Por mais que lutássemos por ser melhores que os nossos adversários, nunca deixamos de nos motivar e incentivar uns aos outros. Fomos uma autêntica família por 24 horas.
        Depois de uma volta de aquecimento, onde se assinalava o cariz social da prova, o tiro de partida é dado, como era de esperar, às 12 horas em ponto. E uma vez mais ao contrário de outras provas, não me coloco o mais à frente possível, mas sim bem na cauda, junto de outros atletas individuais. Nas primeiras horas de corrida, ainda fresco, tenho dificuldade em manter o ritmo lento que desejo. Mantenho um ritmo entre os 7/8 minutos por quilómetro durante as primeiras 5 horas de corrida. Chego facilmente aos 40 quilómetros, mas o calor e a humidade tornam o desafio mais difícil. As paragens nas boxes são constantes, preciso de água e de me alimentar constantemente. Mais tarde vou saber que este é o dia mais quente do ano em Vigo. Ultrapasso as 5 horas de corrida, e a partir daqui começo a fazer series de 5 km, com uma paragem mais prolongada nas boxes  entre cada série, para me alimentar, hidratar e descansar.
        Soa o alarme depois de 50 quilómetros e com 7 horas já passadas. Sinto as fortes náuseas que me costumam atormentar nas corridas mais longas e mais desgastantes. Temo passar as próximas horas sem conseguir ingerir o que quer que seja. E mais grave ainda, sem poder somar quilómetros. A atenção das voluntárias está voltada para mim. Incansáveis, procuram solução para o meu problema. Alguns minutos depois já está um médico junto de mim. Curiosamente, também ele é parte integrante de uma equipa de estafetas. Depois de analisar o meu estado de saúde, recomenda-me que descanse algum tempo, que coloque as pernas ao alto e que coma alguns alimentos salgados.
           Faço-me de novo á pista depois de cumpridas as recomendações  médicas e de já me sentir melhor. Continuo a fazer series de 5 quilómetros, mas o ritmo de corrida é mais lento, e vou alternando com períodos de caminhada rápida. A minha passada lenta e arrastada começa a ser reconhecida pelos meus adversários. Em determinado momento da corrida, quando me aproximo de 3 deles que avançam a caminhar, Javier Sobrino disparou: " Me suena este ruido. Es de un português!"
           Incansáveis continuam a ser os atletas que esperam a sua vez de competir, e os voluntários que se encontram ao longo do percurso. Não param de incentivar, quer a nós os individuais, quer os estafetas. "No me importa que te enfades, no voy parar de animarte."  Nunca me zango com as palavras de incentivo. Em determinados momentos também não me faço rogado no apoio aos restantes atletas. Apenas me zango por me ver ultrapassado por tantas miúdas. Aish.
           Cumpro as 9 horas de corrida, com um total de 60 quilómetros, quando faço uma pausa para jantar. Por insistência das voluntárias, prolongo essa pausa por algum tempo mais, mas rapidamente regresso ao meu conta quilómetros. Mantenho a tática, series de 5 quilómetros, com pausas entre elas. A uma média de 5 quilómetros por hora, atinjo os 95 às 16h30' de corrida. Neste momento, dirijo-me ás boxes e solto um já chega, já não posso mais. Só quero chegar aos 100, e pronto! Tento dormir um pouco, descansar. Que inveja do José Manso que continua a meu lado a dormir como uma criança. Faz demasiado  frio, e não estou convenientemente confortável para poder adormecer. Viro-me para um lado, para o outro. Cubro-me com uma toalha. Faço nova almofada com a roupa que me sobra. Mas nem a contar carneiros consigo adormecer. Incomodado com o frio que sinto, volto á corrida. Preciso de aquecer. Faço um quilómetro, e mais outro, e um mais. Mudo a tática. Faço de 2 em 2 quilómetros, a caminhar nas zonas onde não há público, e a trotar nas zonas mais povoadas, e paro a cada serie durante 15 a 20 minutos. De 2 em 2, ás 22 horas de corrida atinjo a marca dos 110 quilómetros. Reformulo novo objetivo, chegar aos 120.  Ás 10 da manhã, cresce substancialmente o número de espetadores. O entusiasmo é maior. A luta pelos primeiros lugares nas estafetas está ao rubro. Os melhores atletas estão reservados para os últimos quilómetros. Correm como nunca. Os incentivos fazem-se ouvir mais insistentemente. Não há quem tire os olhos do circuito. Já mudei 2 vezes de camisa, nas primeiras trazia o meu nome impresso. Nesta já não trago. Mas estranhamente, as pessoas continuam a tratar-me pelo meu nome. Por vezes, carinhosamente tratam-me por Paulinho. "Animo Paulinho. Vamos p'arriba." Não me faço rogado e mantenho um  ritmo de corrida, lento mas contínuo. Caminhar nesta altura da prova nem pensar. Ás 11 horas chego aos 116 km. Faço as minhas contas, e com um ritmo de 10' o quilómetro, e com paragem nas boxes de tempo igual, a marca dos 120 está no papo. Mas esta última hora torna-se especial. Afinal em Castrelos  nunca corres só. E se aumenta o número de pessoas presentes, aumenta também o número dos que correm por ti. Já não faço paragens longas, apenas o suficiente para tragar um pouco de água e regresso à pista. Mantenho a passada arrastada porque a força escasseia, e levantar as pernas é missão quase impossível. Às 11.40' faço a última paragem nas boxes, com uma missão suplementar. Coloco a bandeira de Portugal sobre os ombros e troto para a linha de meta onde cumpro a volta número 121.  Faltam 18 minutos para o final. Duas voltas e missão cumprida. O que se passa a seguir nem eu sei explicar. O mesmo atleta que há já largas horas vinha a arrastar os pés começa a ganhar força. A passada é larga. Consigo rivalizar com grande parte dos estafetas. Cumpro uma volta mais, em menos de 5 minutos. Pelo caminho emociono-me quando ouço gritar: Portugal, Portugal, Portugal. Parto para uma volta mais, agora acompanhado por um voluntário. Digo-lhe que vamos dar  2 voltas. Tem dificuldade em aceitar, mas tenta manter o meu ritmo, mas desta vez vou mais lento.  No mesmo local onde na volta anterior ouvi gritar o nome de Portugal, cantam-me agora A Portuguesa. Não consigo olhar as caras de quem continua a incentivar-nos, mas muito provavelmente estão tão admirados quanto eu. Nova chegada á meta, e o meu voluntário tem que ser substituído. Que maldade Paulo. Ainda faltam 7 minutos. Digo-lhe que vão ser 2 voltas mais. Mas desta vez compadeço-me do meu voluntário e reduzo o ritmo. Paramos mesmo ,para deixar passar os minutos. Faltam menos de dois minutos para soar o gongo. Recomeçamos a correr. Quando passo pela zona onde ouvi a maior parte dos incentivos, agradeço o apoio que me deram. Mesmo a correr, faço pequenas vénias e aplaudo. Repito semelhante gesto na zona que precede a meta. Também o público é vencedor. Também o público me ajudou a cumprir o objetivo. Não ganhei. Também não perdi. Alias, ninguém perdeu. Quando cada um dá o que tem e o que não tem, não se pode considerar perdedor. Todos ganhamos. Castrelos ganhou.




 
O abraço especial de José Manso

      
     As lágrimas no final da prova são inevitáveis. Começam a ser um costume. Talvez tenha estranhado a falta de apoio de alguém mais próximo, apesar da muito agradável surpresa a meio da tarde de sábado ( obrigado Viviana e Pedro ). Talvez quisesse partilhar a minha alegria no final com alguém especial. Ou talvez quisesse dizer a quantos me disseram para ter juízo, que não sou fácil de derrotar. A verdade é que vivi a mais bela jornada de atletismo em que participei. Por isso foi com muita emoção que recebi abraços e felicitações de quem correu a meu lado, ou de quem me viu correr. "Como venias y como has terminado. Te felicito."  
        Para repetir?
        Se for em Castrelos, claro que repito.

Entrada para as 3 voltas da consagração

            
            Até já!




          



        

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